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Acho que nos refletimos em tudo o que fazemos, em todo o ato, nós e um coletivo, fruto de uma absorção e reflexão por vezes consciente, outras não. Se não somos só como nos vemos, mas sim a soma dos múltiplos olhares, talvez assim seja algo que criamos quando sujeito ao nosso e olhar de outros, não invalidando atribuirmos novos ou sucessivos significados, pois as circunstâncias que nos envolvem podem ser outras ou até o crescimento, provocando em nós diferentes sensações, emoções, reconhecimentos, dúvidas, valores, entre outros. Muitas vezes, dou por mim a revisitar trabalhos meus, a tentar ver e sentir algo. Há uma busca  que eu penso que passa por uma tentativa de compreensão e não só. No entanto, eu gostava que o meu trabalho não fosse indiferente que despertasse algo no outro e que seja sincero, traduzindo um crescimento, falando e fazendo parte da vida, um ser animado e não apenas um corpo ocupando espaço, a não ser que realmente assim faça sentido por ser sentido ou experienciado.

Em todo o caso e em parte, vejo o meu trabalho como um diário onde há um cruzamento com um interior e exterior que  não resulta apenas de um instante.

De São Jorge

Foram registos desenvolvidos ao longo do período em que vivi e trabalhei na ilha de S. Jorge, na Calheta, um local cheio de luz natural e banhado por um oceano que foi percecionado em cores de prata. Contudo, não são só fruto dos momentos vividos na ilha, mas sim de um agrupamento que engloba um passado, um presente e um futuro. São páginas fruto de seleção e transformação, mesmo que por vezes tenha seguido impulsos ou surgirem de uma vontade de querer capturar, ou até mesmo registar, criar ou experimentar. Vejo todo o meu trabalho como um diário e uma forma de comunicar, mas não um diário que vai ficar todo ele escondido aos olhares dos outros, influenciando também os meus registos. São fruto de absorção e reflexão, onde sou veículo e criatura, inserida num meio. Tenho consciência de uma presença narcisista no que desenvolvi, acho que me foquei em mim, uma autorrepresentação, salientando a minha presença. Bem que em tudo o que criamos há uma autorrepresentação.  Uma vez, encontrei numa tese sobre identidade do Orlando da Rosa Faria, uma citação de Medeiros, em que esta referia que as características do narcisismo eram o medo da dependência, o refúgio nos outros, o sentimento de vazio, a raiva reprimida e a insatisfação oral, tendo o culto à intimidade origem no colapso da personalidade. Entretanto, no mito de Narciso, este se apaixonou pelo seu reflexo como castigo de Afrodite, numa versão, e noutra por ter perdido a irmã gémea.  Seja o que for, o meu trabalho não foi algo previamente premeditado, programado, foi fruto do dia a dia e de vontades.  Surgindo muitas vezes nos momentos a sós comigo própria, ou em momentos em que apesar de estar na presença de outros, tive espaço para me focar, abstrair ou aproveitar, ou até mesmo no caso de um em particular, conhecer a sensação de, experimentar pintar ao estar na presença de pessoas mais estranhas, não no sentido de serem seres estranhos, mas no sentido de não me serem tão familiares, não possuir momentos íntimos com estas pessoas, mas abrindo espaço também para conhecê-los melhor, partilhar e criar momentos, a partir de afinidades que começaram a surgir por gostos e interesses em comum.

A meu ver, no gesto está implícito o desenho, um reflexo, que talvez possamos compreender ou aproximarmo-nos um pouco, através do “o quê”, “como”, “porquê”, “quem” e às vezes “para quem” e até mesmo melhorarmos as nossas atitudes e comportamentos ao olharmos para o caminho que percorremos e aquilo que reforçamos, ou o de outros. Mesmo que haja uma parte inconsciente nisso ou que cada um seja um ser por si só, interligado a outros, com as suas próprias vivências e personalidade.

No período, cheguei à conclusão que podia pintar/ desenhar o que queria. Não precisava de me focar numa temática em particular e explorá-la, não precisava seguir um padrão, podia fazer o que queria, quando queria, porque iria estar sempre a contar algo, a selecionar algo, fruto de um jogo de valores, pensamentos, humores, comportamentos, gostos, entre outros, iria convergir no que é a minha história ou passagem, havendo provavelmente um fio condutor. Não fazendo mal incidir em coisas díspares, porque não são tão díspares assim. Conectam-se e fazem parte do que somos, incluindo o modo como reagimos ao exterior. São como migalhas que vou deixando do meu percurso, para não me perder. Páginas soltas, que ao longo do tempo podem se perder, desordenar ou seguir outros caminhos, diferentes do meu, mas que representam e são parte de momentos, momentos presentes na construção de mim mesma.

Nas representações há diversos pontos, um estar ou uma resiliência perante a vontade de pintar, sentimentos de gratidão, o questionamento da efemeridade, uma sacralização pela minha existência e do que me rodeia, afirmações da minha presença, anotações de pensamentos, de modelos, referências, experiências, medos, momentos marcantes (entre os quais, num em particular, houve o reconhecimento face à observação de emoções e conexões fortes, ligadas ao lado humano), dúvidas, confissões… mas onde nem tudo foi dito, escrito ou claro. Terminando esta fase com duas obras:

. Uma pintura realizada a partir de uma fotografia, tirada há alguns anos atrás, nas primeiras visitas a S. Jorge. Tirada no porto, no mar, aos membros inferiores e pés da minha irmã que boiava, evitando a presença de terceiros na imagem. Há uma ligação a essa imagem que vai para além de quem a figura pertence, mas que não deixa de ser figurativo e de haver uma conotação afetiva. – Hoje já seguiu o seu rumo, já não está comigo. Ficando, apenas, com imagens da mesma ou tomando forma através de memórias, por enquanto.

. E por fim uma composição impulsionada pela anterior, onde há vários retângulos, onde a ideia inicial era partir de um conjunto de fotografias da mesma altura da que impulsionou, onde o efeito da luz na água produzia uns valores gráficos e visuais que eu gostava, mas que acabei por abandonar por falta de prazer na elaboração, logo na primeira reprodução. Não me dizia grandes coisas. Perante a presença dos retângulos a azul, fundo registado para o que se ia seguir, associei a uma janela, grelha, grade, calendário – eram os últimos dias na ilha. Ainda se seguiu outras duas representações, cada uma no seu retângulo, por ordem de realização. Uma a partir de uma aguarela realizada no cais da Calheta, num dia de nevoeiro, a tons dourados, mas que senti que não tinha bebido o que lá estava. Parecia mais remeter-me a um fazer. A verdade é que não gosto muito de repetir coisas que já fiz. Eu sei que vão ser sempre diferentes, e talvez seja isso que ainda não “aceitei”. Reproduzir imagens não é viver novamente os mesmos momentos, pode ser recordá-los, mas não os reviver. Seguindo-se um periquito em voo, ave que o meu avô gostava e colecionava, que fez parte das minhas memórias de infância. Acabei com dias por preencher, no fundo azul que era base e fundo proveniente do oceano, de um dos dias em que vim a S. Jorge.

Ficaram também trabalhos por concluir, mas que embora não concluídos, talvez estejam concluídos ou se voltar ao conteúdo, não significa que os retomarei. Havendo abertura para tal, não impossibilitando a continuidade, se houver a possibilidade de criação e o agir. Marcas e registos das minhas caçadas.

Finalizo, afirmando o quanto gostei da minha experiência em S. Jorge, sobretudo devido às pessoas que conheci e que criei relações, de ter tido por perto a minha irmã que amo, de ter gostado da casa, espaço de trabalho e meio, onde vivi, dos momentos e do que fiz, dos apoios que tive nessa viagem e do que levo comigo.

 

2022

Da Biblioteca | Visitada virtualmente…

Foi uma criação que partiu da possibilidade de expor e fazer um trabalho para a Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro que não se chegou a realizar por questões económicas. Na altura, recolhi imagens e pesquisei através da internet sobre o edifício, projetado pela arquiteta Inês Lobo. Passado o tempo, há coisas que já não estão tão claras na minha memória. Mas do que me recordo, antes, naquele local estava uma escola que hoje deu lugar a um outro espaço de cultura e que mantém um papel educativo. Na altura, li algo sobre o espaço ter sido construído como extensão/ continuação do espaço público, da ideia de pavilhão, de cortinas de luz e das panorâmicas para a envolvência. Disso tudo e de outras referências e influências resultaram experiências e estudos, para além de uma pintura inserida no retângulo de ouro, ligado à ideia de crescimento e harmonia, um retângulo que podemos continuar fora dos limites da tela. O retângulo de ouro já era algo que recorria em trabalhos anteriores. Essa relação matemática e de crescimento acreditasse encontrar na natureza e se somos parte dela, também o que construímos faz sentido para mim pertencer-lhe nessa lógica. E sobretudo em lugares direcionados para a cultura há essa procura, penso eu, e são no fundo sítios que trabalham com a comunidade e meio envolvente de forma a zelar por eles, pela sua história e crescer através do conhecimento adquirido e partilhado. No entanto há toda uma fluição, um curso onde há mudanças e transformações que podemos tentar controlar  mas que às vezes são imprevisíveis e que não dependem só de nós, mas onde estamos conectados. Entre a biblioteca e o Palacete  há um jardim fruto da mão do homem, onde crescem árvores num solo branco que na altura associei ao desconhecido, pois na altura lembrei-me do que me citaram que para crescer tinha que se ter um pé no conhecido e outro no desconhecido. Há também uma envolvência que resolvi deixar como esboço, inacabada. Todas essas janelas/portas, através de um conjunto de fotografias numa panorâmica como uma janela de janelas, abrindo o espaço para o espectador e visitante. 

 

Na exposição no centro comercial Parque Atlântico, na montra da antiga loja da Zara Home, achei que fizesse sentido ela estar presente, tendo em conta que é um espaço que está abrindo-se a novos intuitos, a criar diferentes relações com quem o visita e tendo em conta que em geral as zonas comercias podem vir a ser substituídas por outras maiores ou mais atraentes ao consumidor, levando à sua desertificação ou de espaços anteriores, ao insucesso e insustentabilidade do que lá "habita", achei que seria importante fazer parte dessa criação de novas relações com esses espaços que não fosse só o consumo. No entanto, como os centros comerciais são locais de passagem, com uma presença comercial, achei que não fazia sentido expor qualquer obra, devido à leitura e pensamentos que poderiam ser gerados das obras naquele lugar. Então selecionei a minha pintura da biblioteca de forma a que se pense nesses locais também como uma extensão do espaço público e com outras potencialidades.

Quando aberto ao público e exposto os trabalhos, numa primeira aproximação, senti dificuldade em ver as obras que se encontravam na montra. Obrigou-me a interagir com ela, a procurar uma limpeza de ruídos, causados sobretudo pela ausência de luz no interior, agitação exterior e reflexos da envolvência que inclui a nós próprios e aqueles que por lá passam, e assim desvendá-la, descobri-la. Na altura, achei que não funcionava bem mas depois de me afastar e refletir até achei que tinha um sentido ou criei um, porque era como se tivéssemos a comunicar e a promover uma interação mas estivéssemos ofuscados, refundidos pelo que já foi dito a cima, num mundo onde também fazemos parte e onde temos que nos mover. Quando cheguei vi uma condensação de pessoas a passar nos corredores e com o movimento até achei que estivessem com os seus sacos de compra, mas quando vi o vídeo, nos reflexos parecem mais em direção a um lugar pré-programado ou a passear e a socializar como vi na zona do café. Às vezes a nossa perceção é alterada pelos nossos comportamentos, hábitos e experiências, por aquilo que tomamos por adquirido e expectável. Um lugar para uns, um não lugar para outros. São viajantes autistas ou nem por isso? Ou aberto a diferentes estados  de estar e viver o lugar, mas que em princípio não deixa de estar ligado ao consumo, uns para poderem consumir, outros para consumirem?  Tinha associado a uma certa pressa com os seus sacos de compra, como se o mundo corresse e estivessem nas suas vidas apressadas e até consumistas. Como se no reflexo é que houvesse o espetáculo, as luzes da ribalta e na montra alguém/ nós a exprimirmos, apagados na sobrelotação, mesmo que nas montras, por norma, o que lá se encontra tenha o objetivo de seduzir.  Verdade é que a exposição em mim fez me pensar muito no que estou a sentir e no que se passa pelo mundo. A ligação com o nosso meio, como está um caos, como ficamos sentados a assistir, a desfrutar do nosso conforto num carnaval e que no fundo haja ou não um equilíbrio, a natureza é algo imprevisível e fazemos parte dela, estamos nela e podemos ficar assustados quando nos toca. Isso foi apenas a minha leitura, o que me suscitou.

17:18 | 31-03-2022, 3ªfeira

Do in loco…

A uma altura necessitava soltar-me. Era muito tempo à volta de um trabalho, onde os objetos chegaram a levar meses em execução. Inicialmente eu retirava prazer e fazia sentido para mim, até que comecei a aperceber-me da velocidade com que as coisas acontecem. A necessidade ou até exigência – que não sei se é a palavra mais adequada – de apresentar trabalho e manifestar-me no campo expositivo. Um género de pressão, onde a quantidade era sinal de trabalho. Contudo eu realmente parei um tempinho. A forma como pintava exigia muita dedicação, entrega e tempo que eu não tinha, envolta pela monotonia e por um ambiente que pintava de cinzento. A uma altura eu senti-me tão pouco interessante, uma ermita com dificuldade em conectar-me, em identificar-me e acho que posso dizer com receios sociais, hibernando no meu tempo livre. No entanto, isso pesava-me e deparava-me com situações onde sentia-me constrangida. Anteriormente procurava criar algo sublime. Acho que inclusive causar fascínio, longe de ruído e ao mesmo tempo procurando uma resposta intima e certa. Tinha paixão e fui realmente questionando-me, tendo dúvidas ou fazendo associações, mas mais que isso era parte do que me enchia. Contudo, depois de retomar, parecia-me remeter para a caverna de Platão, onde a minha própria pintura já era um gênero de sombra e onde eu estava virada para uma parede literalmente.

 

Eu andava a desenhar em caderno e comecei a ficar fascinada por respostas de outros artistas, onde fugiam da típica tela tradicional, engradada e afixada na parede sobre pregos. Algo de fantástico. Muitas vezes, mesmo antes, começava as minhas pinturas sem as grades e o que começou por ser o reconhecimento das margens como continuação, passou a ser percebido como algo que não era dado grande importância na leitura, uma não legibilidade por não ser uma zona de destaque por norma, a não ser que se saliente a sua continuação. Agora falando nisso até me veio algo que não me recordo se já tinha visto até essa altura, mas acho que sim, de uma reportagem ou documentário ou algo do género onde pessoas faziam as molduras para os quadros e que comparavam as molduras ao cabelo e as pinturas aos rostos das pessoas.

Antes de fixar-me nos momentos familiares, comecei pelo meu corpo. Associei a algo precioso pela forma como pintava, com muita proximidade à superfície como se tivesse a fazer uma joia, apesar de nunca ter feito nenhuma, com enorme atenção e foco, sendo o mais fidedigna possível, mapeando os relevos, a textura da pele, num gênero de desenho cientifico à “lupa”, mas a olho nu que fez me também associar a um mapa do tesouro tatuado num excerto de pele, pois o suporte/ tecido fazia-me lembrar pele e o mosaico de cor a um trabalho antigo de autorrepresentação associado a cartografia e paisagem. Ainda fiz uns outros o que levou à ideia de Frankenstein pelo esquartejamento, apesar de ser tudo partes do mesmo corpo, mesmo que no original talvez haja uma metáfora para um monstro humanizado construído pela presença dos outros em nós, não sei… mas logo desanimei-me, por não querer fixar-me em mim e naquela perspetiva egocêntrica, pelo menos naquela altura, entre outros.

 

Inspirou-me um conjunto de referências, influências e coisas que admirava e me faziam sentir bem, entre outras, contudo há algo que não posso deixar de referir a ligação ao desenho, ao caderno, o in loco, o estar com e a ideia de família. Que associo a casa. Mas o que é para mim uma casa? Um lugar intimo, personalizado, de abrigo e proteção, ligado a uma origem e a memórias.  Seja um lugar(es), corpo(s) ou mente(s) por enquanto é onde procuro e encontro reconforto, suporte, orientação e amor. 

O desenho penso que entrou sobretudo pela presença e impulso dos Urban Sketchers. Antes de participar no grupo, tinha recomeçado a desenhar no caderno, mas a verdade é que já havia muitas pessoas a registar o dia a dia e muitas delas talvez influenciadas por imagens que seguem o manifesto, mesmo sem saberem. Com o desenho diário e cada vez mais diário, sobretudo em tempo de confinamento, onde tivemos alturas em que quase todos os dias tínhamos exercícios lançados online, dos riscadores e aguarelas passei para a tinta, e da tinta para o tecido de tela, numa relação tecido/ papel, sobretudo enquanto objeto bidimensional, começando por pintar/desenhar a minha mãe no quintal. Quando penso no ato de pintar/ desenhar vem me sempre à mente Henri Matisse, e a associação que fez à cisão, ao selecionar e que ai se reflete a personalidade do artista que comparou a um cirurgião.

Foi um trabalho desenvolvido em tempo de pandemia, onde estivemos juntos em casa. Acho que tivemos tempo para saborearmos a presença uns dos outros e fazermos coisas que nos dão prazer. Tivemos visitas, por vezes inesperadas, mas quentes. Mais próximos também dos nossos vizinhos.  Mas também medo de ir às compras, medo do contato com as pessoas menos presentes e desconhecidas, medo de tocar superfícies estranhas, medo do perigo. Medo da nossa vulnerabilidade e questionar a de outros. Dar importância à presença das pessoas que nos rodeiam e não querer perde-las. E com tempo para estar, questionar o quanto realmente são diferentes de nós, o que habita neles, o que os caracteriza, o que habita no desenho, mas o mais importante: estar com.

No entanto, ainda tinha a questão "como expor?" e aí lembrei-me da cama, proveniente da ideia de manta de retalhos, proteção e de um espaço que remete ao intimo e ao lar. Mais tarde pilar/ suporte ou refúgio/conforto. No fundo a minha ligação, talvez, com o que considero a minha casa. 

12:51 | 21-02-2022

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